Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

terça-feira, 31 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XLIV)

46 – natureza-morta (canto de atelier)

Pintei uma natureza-morta
para me lembrar de me tornar o que sou.
Como fundo, uma parede de azulejos banais
e uma nesga de tela voltada contra ela.
Sobre uma mesinha velha objetos do meu convívio:
pincéis sujos mergulhados em aguarrás,
pincéis limpos reunidos em latas de cerveja,
uma paleta imunda sobre monte de jornais.
Situada mais atrás, uma pilha com três livros:
Ilíada, o Rei Lear e O Sobrinho de Rameau, de Diderot,
meus mortos-vivos.
À esquerda, um Klee em reprodução
lembrando-me a necessidade de tornar algo visível
da minha alma de menino,
e uma gravura barata das Donzelas de Avignon,
para almejar em vão a fúria criativa de Picasso.
No centro, ocupando muito espaço,
um velho livro aberto, símbolo do que nunca termino;
sobre ele, um CD com sinfonia de Mahler, a Quinta,
e a capa do Crepúsculo dos Ídolos, de Nietzsche.
Ao lado, trinchas para cobrir grandes superfícies.
À direita, tubos de cores, plasma de quem pinta;
um cinzeiro com um cigarro que queima rápido
suspirando um filete de fumaça,
e, enfim, terminando a peça, um trapo sujo de tinta.


segunda-feira, 30 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XLIII)

45 – interior com caixas

Em caixas de papelão, empoeiradas,
com um barbante sujo amarradas,
guardo todas as teorias sobre o mundo:
as mesmas que se repetem, reeditadas.

Sobre elas deixo uma caixa não selada,
metade cheia, metade sempre vazia,
com um cheiro de delituosa virgindade:
é a caixa da poesia.


Antoni Tàpies, Composição, 1996

domingo, 29 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XLII)

44 – natureza-morta com moldes

A palavra cresce,
ela própria objeto
multiforme
entre as coisas concretas.
Uma massa que fermenta
entre os espaços negativos,
como os que há
entre os dedos das mãos
ou entre as costelas,
vãos aflitivos.

A palavra sobe
como uma maré de cera
fervente,
extração de um molde
do vazio urgente
entre a pêra
e os dentes.

Ou a palavra desce,
rio de lava,
chuva de cinzas
que paralisa a sensação
instantânea
na casca cutânea da idéia
sem vida,
tal como os corpos
de vítimas
conservados por séculos
em Pompéia.


Natureza-morta com Frutas e Jarra, afresco encontrado em Pompéia

sexta-feira, 27 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XLI)

43 – interior nublado

Constatei nitidamente
(de corpo presente),
que é lá fora que o sol se encontra.

As nuvens aqui de dentro mentem!

Magritte, L'Avenir des Statues, 1937

quinta-feira, 26 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XL)

42 – Natureza-morta sem medidas

Como se folgassem de seu fado;
como se pausassem, barcos ancorados;
como se, soldados, acampassem ciganos;
como no banho de sol dos encarcerados,
ali esquecidos, desvinculados no espaço,
numa trégua da própria precisão,
o compasso, a régua e o esquadro.


Marcantonio, Melancolia 9 - Ângulos - Técnica mista

quarta-feira, 25 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXIX)

41 –  interior com espelho neutro

O espelho não é um telescópio.
A tua alma não surge nele
nem quando o ar da tua boca
o embaça.
Tampouco a apalavra é o reflexo
que ao espelho devassa,
mas a carícia que o trinca
e nele brinca
de esconde-esconde:
quem? Quando? Onde?

Também o olhar não é a pedra
que nele se afunda e gera ondas
ou missivas aquáticas:
nele apenas rondas
a superfície estática.

O espelho também não é o Hades
em que Perséfone arde
e seduz;
é o andar de cima, o céu da sala
onde o desejo ignorado,
como nuvem,
dança um tango com a luz.

Mas se o espelho tanto amas,
é que nele surges viva
e outra,
ainda ostra,
lívida
e sedenta
de um reflexo perolado
que de dentro dela se ausenta.


Balthus, Nu Diante do Espelho, óleo, 1955


terça-feira, 24 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXVIII)

40 – natureza-morta com tique-taque

Amo o silêncio sem estrias
das coisas inanimadas.
São nobres, estáveis e destemidas.
Tantas parecem mais distantes
do que as estrelas.
Outras têm um sorriso amigo irremovível,
fossilizado.
Em algumas imagino pálpebras fechadas,
mas há aquelas que, paranóico,
suponho espias do meu existir:
sem elas não teria a sensação de estar aqui.

Amo o silêncio lógico
das coisas inanimadas,
e detesto o rumor das que se fingem inertes
e acocoradas ocultam as próprias pernas,
como o relógio e seu tambor persecutório
que ele não cessa de percutir.

Man Ray, Clock Wheels, 1925

segunda-feira, 23 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXVII)

39 – interior com performance (artística)

As paredes tremem
ao meu grito bárbaro:
temem que eu as derrube
como forma dramática
de piorar a acústica.

Daumier, No Teatro, óleo.

domingo, 22 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXVI)

38 – natureza-morta com backup

Gavetas são, certamente,
um arquivo externo da memória,
guardam o que não é urgente
e pode esperar por uma hora
ou por algumas décadas.

Já encontrei engavetados
pedaços secos de pétalas
que outrora perfumavam o ar;
um velho estojo de pó de arroz;
uma página de jornal dos anos setenta
que ficou para ser lida depois;
um par de óculos com uma perna amputada;
uma caneta tinteiro com uma pena dourada
e sem escrita;
duas mechas de cabelos castanhos
algemadas por laço de fita,
colhidas nos tempos de antanho
a uma cabeça que ficou maior e encanecida;
e encontrei até, para meu espanto,
os extremos escritos de uma vida
esquecidos lá dentro:
em envelope sebento,
um atestado de óbito envolvido
por uma certidão de nascimento.

Joaquín Torres Garcia, Composição Construtiva, 1943

sexta-feira, 20 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXV)

37 – interior com um tipo de artista

Basta polir
com a ponta
dos próprios dedos
um quadrado imaginário
numa das quatro paredes
e um pequeno espelho
aos seus olhos surgirá:

- Um diamante raro! Ele dirá.

Philippe Halsman, Salvador Dali Atomicus, fotografia

quinta-feira, 19 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXIV)

36 – Natureza-morta com transfiguração

O brilho no côncavo da xícara
traz ao meu silêncio uma interjeição:
ah!
Era a meia-lua há pouco eclipsada
que agora esplende um vazio
cheio de luz perolada,
e apenas não retornará ao céu
porque só lhe restou uma asa.

Renoir, Natureza-morta com Limões e Xícara, óleo, 1910

terça-feira, 17 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXIII)

35 – interior excretor

Nesse interior, um labirinto
sem divisórias.
Os movimentos peristálticos
no íntimo do pássaro
que evacua resíduos de céu
no chão da gaiola.


Matisse desenhando, foto de Cartier-Bresson

segunda-feira, 16 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXII)

34 – natureza-morta com ser vivo

Antiga edição de Moby Dick,
um livro marítimo:

a traça flagrada,
peixe-leviatã aflito,
desaparece, tão rápida,
sob a água mencionada
no segundo parágrafo
do primeiro capítulo.

Van Gogh, óleo, 1887

domingo, 15 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXI)

33 – interior com saudade

O lugar que ocupavas
será sempre teu.
Até o ar que se renova
e não te conheceu
criou para ti um nicho
transparente, aéreo:
talvez seja
o que se costuma chamar de vácuo
e eu imaginava haver no bojo
das lâmpadas elétricas mais antigas.

Sei que tu só te ausentarás totalmente
quando se apagar a luz
da minha consciência,
o que porá abaixo a casa, o mundo
e qualquer noção do que sejam
o lado de dentro e o lado de fora.

Magritte, O Telescópio, óleo, 1963




sábado, 14 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXX)

32 – natureza-morta com teias e poeira

As garrafas se tornaram opacas
como se contivessem nuvens;
e têm a beleza hierática
das figuras de um mosaico bizantino,
como, por exemplo, o da comitiva
do imperador Justiniano.

As aranhas, engenheiras estranhas,
lançaram-lhes entre os gargalos
fios inúteis pelos quais não correm teleféricos.

Mas, para o regalo da arte,
um breve raio de sol que transita entre eles
torna esse canto empoeirado um cenário feérico.

Giorgio Morandi, óleo sobre tela.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXIX)

31 – interior remanescente

A cômoda de cinco gavetas,
nobre e longeva,
vive deslocada e fora de moda
na área de serviço.

Foi condenada a se adequar
à sua idade:
está cheia de velharias plebéias.

Seus primeiros donos
há muito ocupam eles mesmos
gavetas de outra natureza,
mas ela ainda se recorda
da beleza virginal
do seu primeiro enxoval.

Mary Cassat, Tea, óleo, 1880

quarta-feira, 11 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXVIII)

30 – natureza-morta com mitologia

O isqueiro antigo me lembra Prometeu;
as cinzas do cinzeiro, Fênix;
o cigarro me lembra a forja de Hefestos;
o telefone e a caderneta de endereços
me lembram Hermes;
as moedas espalhadas me lembram Zeus;
me recorda Athena a caneta inerme;
o porta-retratos me lembra Afrodite;
a folha em branco me lembra Diana,
a virgem caçadora,
e o jornal de ontem, a caixa de Pandora.

Kurt Schwitters, The Hitler Gang, colagem

terça-feira, 10 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXVII)

29 – interior com primavera

Vivamos de mãos dadas
neste interior.
Deixemos que circulem
os nossos sonhos,
esses eqüinos amestrados
pelo carrossel dos relógios.

Desabitemos o lá-fora,
se aqui dentro resumimos
as quatro estações do ano
a partir da primavera:
os teus cílios vibrando,
a tua boca adorada
já ressuma alento de flor,
evocando o ardor
no labelo da tua orquídea
ainda ocultada.

Esqueçamos o inverno exterior.

Matisse, Interior em Nice, óleo, 1922

segunda-feira, 9 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXVI)

28 – natureza-morta com palavras

Essa pêra é apenas uma palavra
que espera
e vegeta
no dia banal.

Essa faca é também uma palavra,
mas se destempera
com sorriso insidioso
de animal.

Dali, Natureza-morta viva, óleo, 1956

domingo, 8 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXV)

27 – interior ocupado

Há pouco eu era criança,
e eram enormes as salas,
naves;
estradas, os corredores;
eram coliseus os interiores
onde reinavam
os meus sonhos
em miniaturas.

De súbito me expandi,
cresceram-me o crânio,
o tórax, os braços,
ou contraiu-se o espaço,
ocupou-se o vão e a folga:
em claustrofóbica ruína,
tenho os sonhos oprimidos
pela arquitetura.

Magritte, L' Anniversaire, 1959

sexta-feira, 6 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXIV)

26 – natureza-morta com vida interior

Nasce o olho da morte
na rubra maçã:
um ser vivo trabalha dentro dela.

Caravaggio, Natureza-morta com Cesto de Frutas, óleo, 1601

quinta-feira, 5 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXIII)

25 – interior com estradas e saídas

Nas quatro paredes,
centenas de janelas
flutuantes,
retráteis;

e duas portas:
uma, fechada a chave,
dá para a rua,
a outra, entreaberta,
para o fim do mundo.

Kurt Schwitters, Oorlog, colagem, 1930

quarta-feira, 4 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXII)

24 – natureza-morta com pressentimento

As solas do par de sapatos
ainda sem uso,
já trazem ao tampo da mesa
alguma sujeira
das ínvias calçadas do mundo.


Miró, Natureza-morta com sapato velho, óleo, 1937

terça-feira, 3 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXI)

23 – interior com marinha

Sob um peso de papel
a folha branca
não se conforma:
o vento vindo da janela
insufla nela ímpetos
de velame de barco,
e num poema não-escrito,
por espasmos, ela voga.

Edward Hopper, Rooms by the Sea, óleo

segunda-feira, 2 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XX)

22 – ferramentas

O sono momentâneo
das coisas com função:

a chave de fenda
para torturar a cabeça
frouxa dos parafusos
existenciais;
o serrote para seccionar
as veias secas
da madeira dogmática;
a montolia para irrigar
as articulações fatigadas
dos argumentos;
o formão para formalizar
o contrato das aspirações
contrafeitas;
o esquadro para enquadrar
a circunferência viciosa
da dúvida;
o nível para corrigir
o ângulo desafiador
da vertigem;
o prumo para verticalizar
as verdades relativas,
e o martelo ao pé de tudo
como um velho
cão de guarda
míope e sem olfato.

Todos dormem
descuidados.

Marcantonio, Melancolia 27, téc. mista